RitaQuando eu estava planejando visitar o Brasil para entender melhor a situação atual da educação dos povos indígenas do país em 2017, Dileep Ranjkar, meu colega mais graduado na Fundação Azim Premji, escreveu para alguns dos seus contatos e a Rita foi mencionada como pessoa chave para se saber sobre a situação da educação escolar indígena. Posteriormente, o nome dela surgiu em conversas com outras pessoas quando cheguei ao Brasil, e também na universidade que me acolheu. Conseguir marcar uma entrevista, no entanto, não foi fácil. Amigos da universidade e do escritório de um senador que conheci no Brasil ajudaram. Essas interações resultaram na nossa primeira reunião em seu escritório, no ministério da Educação e, para mim, ficou claro que havia ali uma pessoa especial envolvida com a educação de povos indígenas no Brasil.

Seguem alguns recortes da sua história pessoal. Rita Gomes do Nascimento pertence a um grupo indígena brasileiro chamado “Potyguara”, que tinha suas raízes em diferentes territórios indígenas do país. Uma de doze filhos, sua mãe era lavadeira, e seu pai era (e ainda é) agricultor e caçador. Havia a crença entre seu povo (e muitos outros) de que o leite materno de uma mulher grávida era venenoso, e como sua mãe havia ficado grávida quando ela ainda era amamentada, muito pequena ainda Rita foi dada para a sua avó materna. Essa situação acabou sendo uma benção insuspeita.

Na vila da sua avó havia uma escola e foi essa escola que a possibilitou iniciar seus estudos. Assim que terminou o ensino médio, Rita entrou na única faculdade da localidade, que oferecia um curso de magistério. Ao se formar, foi contratada como professora temporária, mais tarde sendo destacada para uma escola rural onde havia muitos indígenas. Enquanto ali estava, foi chamada pela secretaria de educação do estado para supervisionar a educação escolar de indígenas. Também ficou responsável pelos cursos de magistério em nível médio para esses grupos.

Com essa experiência em educação escolar, Rita desenvolveu o interesse na educação superior que a levou a sair para estudar – fez mestrado e doutorado em educação, tornando-se uma das primeiras indígenas a obter um doutorado no Brasil. Posteriormente, fez pós-doutorado em ciências da educação na Argentina e passou a fazer parte dos círculos acadêmicos de educação indígena na América Latina.

Essas conquistas educacionais não a afastaram dos problemas do seu povo, pelo contrário, ela se tornou intimamente envolvida com o movimento indígena em um momento quando os povos indígenas começaram a reivindicar seus direitos em nível nacional. Isso ocorreu em um período em que os povos indígenas e outros grupos marginalizados começaram a se unir politicamente contra as elites que, até então, governavam o país. Esta situação a levou a se envolver na política emergente da classe trabalhadora e marginalizada no país.

Devido aos seus longos anos de experiência na educação de povos indígenas, ela foi convidada a servir o Ministério da Educação do governo federal do Brasil em diferentes funções e a facilitar a educação de crianças indígenas quando o Partido dos Trabalhadores estava no poder no país. Rita serviu como Conselheira da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE/CEB) de 2012 a 2015, e como diretora da Diretoria de Políticas de Educação do Campo, Indígena e para as Relações Étnico-Raciais do Ministério da Educação de 2015 a 2018. Nessa última função, tinha entre suas responsabilidades interagir com grupos indígenas de recém contato em nome do Ministério da Educação. (É importante salientar que alguns grupos ainda estão para serem contatados, e outros que são desconhecidos. O processo de contato ainda continua). Rita discutia com estes grupos suas necessidades. Mesmo tais grupos exigem “educação”. Alguns pleiteiam “educação” como meio para lidar com os forasteiros, pois temem (verdadeiramente) que a falta dela pode levar a diferentes tipos de exploração.

Quando o Partido dos Trabalhadores chegou ao poder, o movimento indígena se tornou politicamente intenso ou mais perceptível no Brasil. Este movimento não queria mais que a educação para indígenas estivesse nas mãos de forasteiros – inclusive organizações não-governamentais ou indivíduos caridosos de comunidades não indígenas. E esta é uma combinação interessante. Por um lado, exigiam uma educação formal ou convencional [regular] e, por outro lado, queriam controlar essa educação. Almejavam tornar indígena a educação moderna com dois objetivos: 1.  satisfazer as necessidades para o renascimento de uma sociedade que se tornara mais e mais conectada com os outros; 2. aumentar a capacidade dos próprios indígenas de refletir e continuar (e não de aceitar ou rejeitar sem críticas) suas vidas e conhecimentos indígenas.

Rita foi testemunha e facilitou em grande medida o processo pelo qual os povos indígenas retomaram a educação escolar. Eles separaram a educação indígena da educação escolar para indígenas. A educação indígena é a transferência de conhecimento e cultura para as gerações mais novas, para as quais eles seguem as instituições tradicionais. Já a educação escolar para indígenas é o acesso às ferramentas e instrumentos da sociedade não indígena para que possam lidar com o mundo em rápida mudança. (Nesse sentido, não vejo uma grande diferença entre esses grupos e qualquer grupo social na sociedade indiana. Os brâmanes, o grupo com o mais alto nível de escolaridade da sociedade indiana, têm diferentes estratégias para sustentar seu modo de vida tradicional, ao mesmo tempo que adquirem educação moderna para se integrarem à sociedade global dominante). Um desafio que o movimento indígena enfrentou foi a falta de um número suficiente de professores qualificados dos povos indígenas. Rita desempenhou um papel de liderança em nome do governo brasileiro para negociar e trabalhar com as principais universidades do país para desenvolver um programa especial de treinamento de professores para estudantes indígenas. Isto é, para atender às necessidades especiais dos povos indígenas, que requer a preparação e entrega de materiais de aprendizagem que reflitam idiomas e contextos socioculturais, além de aprimorar habilidades para afirmar direitos e espaço ao lidar com as comunidades convencionais. Esse processo não foi tão fácil, pois esse era um projeto “não convencional” para acadêmicos universitários padrão. Rita tem experiência em primeira mão do processo e estas são perspicazes para acadêmicos como eu.

Há alguns dias, Rita esteve na Universidade Azim Premji e interagiu com estudantes da Faculdade de Educação e com participantes de um workshop de compartilhamento de conhecimento sobre a educação de crianças adivasi [indígenas] na Índia. O workshop contou com a presença de alguns representantes de povos adivasi, funcionários do governo, acadêmicos e representantes de organizações não governamentais que trabalham para a educação de crianças adivasi.

Suas observações como indígena e também educadora que supervisionou a transição da educação indígena em seu país nos ajudam a extrair algumas lições importantes. Os povos indígenas:

  1. Exigem e precisam de educação regular. Isso, segundo eles, é importante para melhorar a capacidade de lidar com a sociedade convencional.
  2. Não desejam negligenciar a própria cultura, conhecimentos tradicionais e a realidade contextual. A cultura, tradição e contexto são atendidos pelas instituições tradicionais que eles chamam de educação indígena (que é diferente da educação escolar) e pela indigenização da educação formal.
  3. Desejam mudar a pedagogia e a oferta da educação escolar para que esses se conectem à realidade deles e desejam controlar os institutos que proveem essa educação.

Entretanto, tais mudanças na pedagogia e no controle ocorrem quando os próprios indígenas se mobilizam política e socialmente. Isso mostra a conexão entre a transição política e a mudança educacional.

Todas essas considerações não significam afirmar que a educação de povos indígenas no Brasil tenha alcançado uma situação perfeita. Há desafios persistentes. Como já assinalei em outras ocasiões, o ensino médio continua sendo um desafio. Há também sérios desafios na educação universitária de povos indígenas.

Recentemente, houve uma grande mudança política no Brasil. Um agrupamento de centro direita a la Trump, conquistou o poder nas eleições de 2018 e foi empossado no início de 2019. Como parte dessa mudança, Rita foi dispensada do governo federal e teve que voltar para a secretaria de educação de seu estado há cerca de 20 dias. Não há como prever o que ocorrerá com a educação de povos indígenas como parte dessa mudança política. Alguns direitos em termos de educação indígena foram incorporados na constituição e não têm como ser facilmente alterados. Compulsões políticas podem encorajar o atual regime a negociar com parcelas dos grupos indígenas (assim como com outros grupos marginalizados, como os negros). Ou, já que os indígenas passaram por uma transição em termos de mobilização social e política, isso pode ajudá-los a avançar.